I
Houve tempo em que os meus olhos
Gostavam do sol brilhante,
E do negro véu da noite,
E da aurora cintilante.
Gostavam da branca nuvem
Em céu de azul espraiada,
Do terno gemer da fonte
Sobre pedras despenhada.
Gostavam das vivas cores
De bela flor vicejante,
E da voz imensa e forte
Do verde bosque ondeante.
Inteira a natureza me sorria!
A luz brilhante, o sussurrar da brisa,
O verde bosque, o rosicler d'aurora,
Estrelas, céus, e mar, e sol, e terra,
D'esperança e d'amor minha alma ardente,
De luz e de calor meu peito enchiam.
Inteira a natureza parecia
Meus mais fundos, mais íntimos desejos
Perscrutar e cumprir; - almo sorriso
Parecia enfeitar co'os seus encantos,
Com todo o seu amor compor, doirá-lo,
Porque os meus olhos deslumbrados vissem-no,
Porque minha alma de o sentir folgasse.
Houve tempo em que os meus olhos
Gostavam do sol brilhante,
E do negro véu da noite,
E da aurora cintilante.
Gostavam da branca nuvem
Em céu de azul espraiada,
Do terno gemer da fonte
Sobre pedras despenhada.
Gostavam das vivas cores
De bela flor vicejante,
E da voz imensa e forte
Do verde bosque ondeante.
Inteira a natureza me sorria!
A luz brilhante, o sussurrar da brisa,
O verde bosque, o rosicler d'aurora,
Estrelas, céus, e mar, e sol, e terra,
D'esperança e d'amor minha alma ardente,
De luz e de calor meu peito enchiam.
Inteira a natureza parecia
Meus mais fundos, mais íntimos desejos
Perscrutar e cumprir; - almo sorriso
Parecia enfeitar co'os seus encantos,
Com todo o seu amor compor, doirá-lo,
Porque os meus olhos deslumbrados vissem-no,
Porque minha alma de o sentir folgasse.
(...)
II
Agora a flor que m'importa,
Ou a brisa perfumada,
Ou o som d'amiga fonte
Sobre pedras despenhada?
Que me importa a voz confusa
Do bosque verde-frondoso,
Que m'importa a branca lua,
Que m'importa o sol formoso?
Que m'importa a nova aurora,
Quando se pinta no céu;
Que m'importa a feia noite,
Quando desdobra o seu véu?
Estas cenas, que amei, já me não causam
Nem dor e nem prazer! - Indiferente,
Minha alma um só desejo não concebe,
Nem vontade já tem!... Oh! Deus! quem pôde
Do meu imaginar as puras asas
Cercear, desprender-lhe as níveas plumas,
Rojá-las sobre o pó, calcá-las tristes?
Perante a creação tão vasta e bela
Minha alma é como a flor que pende murcha;
É qual profundo abismo: - embalde estrelas
Brilham no azul dos céus, embalde a noite
Estende sobre a terra o negro manto:
Não pode a luz chegar ao fundo abismo,
Nem pode a noite enegrecer-lhe a face;
Não pode a luz à flor prestar mais brilho
Nem viço e nem frescor prestar-lhe a noite!
Poema deserto
João Cabral de Melo Neto
Todas as transformações
todos os imprevistos
se davam sem o meu consentimento.
todos os atentados
eram longe da minha rua
Nem mesmo pelo telefone
me jogavam uma bomba.
Alguém multiplicava
alguém tirava retratos:
nunca seria dentro de meu quarto
onde nenhuma evidência era provável.
Havia também alguém que perguntava:
Por que não um tiro de revólver
ou a sala subitamente às escuras
Eu me anulo me suicido,
percorro longas distâncias inalteradas,
te evito te executo
a cada momento e em cada esquina.
Adeus a um amigo que parte
Li Bai
As montanhas azuladas
bordejam as muralhas ao norte.
A água cristalina
contorna as muralhas ao leste.
Nesse lugar
nos separamos.
Você, erva errante,
por milhares de li.*
Nuvem flutuante,
humores vagabundos,
sol que se vai,
velhos amigos que se afastam,
nós dois nos acenando
na hora da partida.
E mais uma vez relincham
os nossos cavalos.
*Nota dos TT.: medida chinesa correspondente a 0,5 km.
Tradutores: Sérgio Capparelli e Sun Yuqi (Edição L&PM, 2012, p. 35).
Trecho de "Cobra" de Herberto Helder:
Poema de Ana Chiara, "Fissura no cóccix da poesia"
Agora a flor que m'importa,
Ou a brisa perfumada,
Ou o som d'amiga fonte
Sobre pedras despenhada?
Que me importa a voz confusa
Do bosque verde-frondoso,
Que m'importa a branca lua,
Que m'importa o sol formoso?
Que m'importa a nova aurora,
Quando se pinta no céu;
Que m'importa a feia noite,
Quando desdobra o seu véu?
Estas cenas, que amei, já me não causam
Nem dor e nem prazer! - Indiferente,
Minha alma um só desejo não concebe,
Nem vontade já tem!... Oh! Deus! quem pôde
Do meu imaginar as puras asas
Cercear, desprender-lhe as níveas plumas,
Rojá-las sobre o pó, calcá-las tristes?
Perante a creação tão vasta e bela
Minha alma é como a flor que pende murcha;
É qual profundo abismo: - embalde estrelas
Brilham no azul dos céus, embalde a noite
Estende sobre a terra o negro manto:
Não pode a luz chegar ao fundo abismo,
Nem pode a noite enegrecer-lhe a face;
Não pode a luz à flor prestar mais brilho
Nem viço e nem frescor prestar-lhe a noite!
Poema deserto
João Cabral de Melo Neto
Todas as transformações
todos os imprevistos
se davam sem o meu consentimento.
todos os atentados
eram longe da minha rua
Nem mesmo pelo telefone
me jogavam uma bomba.
Alguém multiplicava
alguém tirava retratos:
nunca seria dentro de meu quarto
onde nenhuma evidência era provável.
Havia também alguém que perguntava:
Por que não um tiro de revólver
ou a sala subitamente às escuras
Eu me anulo me suicido,
percorro longas distâncias inalteradas,
te evito te executo
a cada momento e em cada esquina.
Adeus a um amigo que parte
Li Bai
As montanhas azuladas
bordejam as muralhas ao norte.
A água cristalina
contorna as muralhas ao leste.
Nesse lugar
nos separamos.
Você, erva errante,
por milhares de li.*
Nuvem flutuante,
humores vagabundos,
sol que se vai,
velhos amigos que se afastam,
nós dois nos acenando
na hora da partida.
E mais uma vez relincham
os nossos cavalos.
*Nota dos TT.: medida chinesa correspondente a 0,5 km.
Tradutores: Sérgio Capparelli e Sun Yuqi (Edição L&PM, 2012, p. 35).
Trecho de "Cobra" de Herberto Helder:
Poema de José Régio:
Poema "A minha voz", de Vitorino Nemésio
Poema de Ana Chiara, "Fissura no cóccix da poesia"
como te dizer?
assim nu e cru,
algo se partiu
entre nós,
assim nu e cru,
algo se partiu
entre nós,
(no nó da coluna?
no cuco, no bico
pássaro ?)
Lá onde o corpo
se sustenta,
o peso da vida senta.
Como te dizer assim
sem apontar o lugar?
sem ser vulgar,
querido.
Lá, onde a porca torce o rabo,
a raiva grita agudo
onde o mundo se perde
em defender-se guardar-se
virgem só para um,
não mais teu poema,
nunca mais.
"Hospício é Deus", de Maura Lopes Cançado
no cuco, no bico
pássaro ?)
Lá onde o corpo
se sustenta,
o peso da vida senta.
Como te dizer assim
sem apontar o lugar?
sem ser vulgar,
querido.
Lá, onde a porca torce o rabo,
a raiva grita agudo
onde o mundo se perde
em defender-se guardar-se
virgem só para um,
não mais teu poema,
nunca mais.
"Hospício é Deus", de Maura Lopes Cançado
Não perca um beijo sequer
porque despedir-se
ecoa
porque a manhã de sol
queima as memórias
porque os corpos
desacostumam de posição
porque a fechadura
se troca
porque os canos
arrebentam
e a casa encolhe
as colunas de sustentação
porque aos domingos
costuma chover
(pra dentro)
porque existe
(a noite de)
alma penada
porque os cadernos
guardam apenas listas
de compras, datas,
preces a nós mesmos
em caligrafia mansa
porque as fotografias
de álbum são
raras agora
e quando
olhamos pra elas...
como sorriem foscas
murmurando que o passado
é mesmo mais antigo
do que pensávamos!
Nenhum comentário:
Postar um comentário