Literatura à vista

Quadras da minha vida - Gonçalves Dias

I
Houve tempo em que os meus olhos
         Gostavam do sol brilhante,
E do negro véu da noite,
          E da aurora cintilante.

Gostavam da branca nuvem
          Em céu de azul espraiada,
Do terno gemer da fonte
          Sobre pedras despenhada.

Gostavam das vivas cores
          De bela flor vicejante,
E da voz imensa e forte
          Do verde bosque ondeante.

Inteira a natureza me sorria!
A luz brilhante, o sussurrar da brisa,
O verde bosque, o rosicler d'aurora,
Estrelas, céus, e mar, e sol, e terra,
D'esperança e d'amor minha alma ardente,
De luz e de calor meu peito enchiam.
Inteira a natureza parecia
Meus mais fundos, mais íntimos desejos
Perscrutar e cumprir; - almo sorriso
Parecia enfeitar co'os seus encantos,
Com todo o seu amor compor, doirá-lo,
Porque os meus olhos deslumbrados vissem-no,
Porque minha alma de o sentir folgasse.

(...)

II
Agora a flor que m'importa,
           Ou a brisa perfumada,
Ou o som d'amiga fonte
           Sobre pedras despenhada?

Que me importa a voz confusa
           Do bosque verde-frondoso,
Que m'importa a branca lua,
           Que m'importa o sol formoso?

Que m'importa a nova aurora,
           Quando se pinta no céu;
Que m'importa a feia noite,
           Quando desdobra o seu véu?

Estas cenas, que amei, já me não causam
Nem dor e nem prazer! - Indiferente,
Minha alma um só desejo não concebe,
Nem vontade já tem!... Oh! Deus! quem pôde
Do meu imaginar as puras asas
Cercear, desprender-lhe as níveas plumas,
Rojá-las sobre o pó, calcá-las tristes?
Perante a creação tão vasta e bela
Minha alma é como a flor que pende murcha;
É qual profundo abismo: - embalde estrelas
Brilham no azul dos céus, embalde a noite
Estende sobre a terra o negro manto:
Não pode a luz chegar ao fundo abismo,
Nem pode a noite enegrecer-lhe a face;
Não pode a luz à flor prestar mais brilho
Nem viço e nem frescor prestar-lhe a noite!







Poema deserto
João Cabral de Melo Neto

Todas as transformações
todos os imprevistos
se davam sem o meu consentimento.

todos os atentados
eram longe da minha rua
Nem mesmo pelo telefone
me jogavam uma bomba.

Alguém multiplicava
alguém tirava retratos:
nunca seria dentro de meu quarto
onde nenhuma evidência era provável.

Havia também alguém que perguntava:
Por que não um tiro de revólver
ou a sala subitamente às escuras

Eu me anulo me suicido,
percorro longas distâncias inalteradas,
te evito te executo
a cada momento e em cada esquina.








Adeus a um amigo que parte
Li Bai

As montanhas azuladas
      bordejam as muralhas ao norte.
A água cristalina
      contorna as muralhas ao leste.
Nesse lugar
      nos separamos.
Você, erva errante,
      por milhares de li.*
Nuvem flutuante,
      humores vagabundos,
sol que se vai,
      velhos amigos que se afastam,
nós dois nos acenando
       na hora da partida.
E mais uma vez relincham
       os nossos cavalos.

*Nota dos TT.: medida chinesa correspondente a 0,5 km.

Tradutores: Sérgio Capparelli e Sun Yuqi (Edição L&PM, 2012, p. 35).












Trecho de "Cobra" de Herberto Helder:

















Poema de José Régio:

































Poema "A minha voz", de Vitorino Nemésio







Poema de Ana Chiara, "Fissura no cóccix da poesia"

como te dizer?
assim nu e cru,
algo se partiu
entre nós,
(no nó da coluna?
no cuco, no bico
pássaro ?)
Lá onde o corpo
se sustenta,
o peso da vida senta.
Como te dizer assim
sem apontar o lugar?
sem ser vulgar,
querido.
Lá, onde a porca torce o rabo,
a raiva grita agudo
onde o mundo se perde
em defender-se guardar-se
virgem só para um,
não mais teu poema,
nunca mais.









"Hospício é Deus", de Maura Lopes Cançado























Não perca um beijo sequer
porque despedir-se
ecoa

porque a manhã de sol
queima as memórias

porque os corpos
desacostumam de posição

porque a fechadura
se troca

porque os canos
arrebentam

e a casa encolhe
as colunas de sustentação

porque aos domingos
costuma chover
(pra dentro)

porque existe
(a noite de)
alma penada

porque os cadernos
guardam apenas listas

de compras, datas,
preces a nós mesmos
em caligrafia mansa

porque as fotografias
de álbum são 
raras agora

e quando
olhamos pra elas...

como sorriem foscas
murmurando que o passado
é mesmo mais antigo
do que pensávamos!

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